domingo, 23 de março de 2014
Ucrânia entre Este e
Oeste: quem foi que disse que a Guerra Fria acabou?
Por EDSON MUIRAZEQUE
Os manuais de história de relações internacionais têm retratado a ideia de
que a Guerra Fria, conflito ideológico que opôs o Leste e o Oeste por quase
meio século, terminou no final da década de 1980 e início da década de 1990 do
século passado. Transformações profundas em dois dos maiores pilares da Guerra
Fria têm sido citadas como responsáveis pelo seu fim: a queda do muro de Berlim
e o desmembramento da União Soviética. Contudo, variados eventos que têm
ocorrido no “período pós-Guerra Fria”, como a
crise política na Ucrânia, têm tido tendência de deitar abaixo a tese do
fim da Guerra Fria.
Conceptualmente, a Guerra Fria tem sido assumida como tendo sido um
confronto de ideologias: capitalismo, representado pelos EUA e seus aliados, e
comunismo, representado pela União Soviética e seus aliados. Mas mais do que um
confronto de ideologia, a Guerra Fria era marcada por uma competição política,
económica e militar. Enquanto a Guerra Fria persistiu – geralmente assume-se
que a contenda ideológica tenha se estendido entre o fim da II Guerra Mundial e
o início da década de 1990 – as relações internacionais eram marcadas por
intensas rivalidades entre os dois blocos de poder. Embora a designação “fria”
faça referência ao facto de não ter havido um confronto militar directo entre
as duas superpotências vencedoras da II Guerra Mundial, as mesmas haviam se
especializado em financiar guerras intra e entre os seus Estados clientes. Não
é de admirar, por exemplo, o posicionamento das superpotências nas guerras em
Angola, na categoria “intra”, e Coreia do Norte-Coreia do Sul, na categoria
“entre”.
Vários incidentes, eventos ou pilares corporizaram os anos de vigência da
Guerra Fria. Dos mais vistosos podemos destacar a divisão da Alemanha em duas,
o Plano Marshall vs o Comecon, a Organização do Tratado do Atlântico Norte
(OTAN) vs o Pacto de Varsóvia, a crise dos mísseis em Cuba, a guerra entre as
duas Coreias, a guerra civil em Angola, entre outros. Os elementos aqui citados
marcaram o período de vigência da Guerra Fria e ilustram a existência de
profundas diferenças ideológicas e de interesses entre os dois blocos. De todos
estes elementos, a divisão da Alemanha em duas, e a consequente edificação do
Muro de Berlim, constituiu o pilar fundamental de todas as animosidades que se
seguiram ao longo de quase meio século de rivalidades.
O Fim da Guerra Fria?
Os desenvolvimentos que se verificaram na segunda metade da década de 1980
e início da década de 1990 levaram à crença de que a Guerra Fria havia chegado
ao fim. Com efeito, na União Soviética havia chegado ao poder, em 1985, Mikhail
Gorbachev, depois de alguns anos de turbulência na liderança Soviética
(Brezhnev morreu em 1982 e foi sucedido por Yuri Andropov que, em pouco tempo,
foi também sucedido por Konstantin Chernenko). Gorbachev chega ao poder numa
altura em que a elite Soviética estava ansiosa e preocupada com os vários
problemas que o país estava a enfrentar, especialmente os económicos. Para
fazer face aos problemas, Gorbachev implementou, internamente, um programa
radical de reforma que foi corporizado pela perestroika (reconstrução) e
glasnost (abertura, transparência). Com estas duas políticas, Gornachev
procurou democratizar e liberalizar cada vez mais as instituições Soviéticas.
Para o sucesso das reformas que estava a implementar internamente,
Gorbachev acreditava ser necessário adoptar uma nova postura em relação às suas
relações com o exterior. É deste modo que o líder Soviético, em 1987, apela
para uma “nova visão” visão Soviética sobre as suas relações com o exterior. O
líder Soviético estava preocupado com o facto das relações com o exterior
estarem deterioradas. No esforço de dar um novo rumo à posição Soviética no
concerto das Nações, Gorbachev prosseguiu uma linha de política externa que o
levou à aproximação das lideranças dos EUA, Ronald Reagan, da Grã-Bretanha,
Margaret Tatcher, da Alemanha Ocidental, chanceler Helmut Kohl, e outros
líderes Ocidentais. Os seus esforços diplomáticos levaram à assinatura dos
acordos de redução de armas estratégicas (START I) com os EUA, à retirada da
União Soviética do Afeganistão e ao corte do apoio aos movimentos
revolucionários e governos anti-Ocidentais em África.
As grandes mudanças no âmbito da política externa Soviética fizeram-se
sentir mais na Europa do Leste. O líder Soviético avisou aos seus regimes
comunistas clientes que a União Soviética estava a retirar o seu apoio e que
não mais usaria a força para os manter no poder. Do mesmo modo, Gorbachev foi
incentivando as lideranças daqueles países a introduzirem reformas internas e a
sobreviverem economicamente por si próprios. O efeito imediato do conjunto de
reformas implementadas por Gorbachev assistiu-se na queda de regimes comunistas
na Europa Oriental, com destaque para a Alemanha Oriental. A queda dos
comunistas da República Democrática da Alemanha e a consequente queda do Muro
de Berlim levaram à reunificação da Alemanha em 1989. Dois anos mais tarde, em
1991, a União Soviética desmembra-se e várias repúblicas se tornam
independentes. A Guerra Fria chegava ao seu fim!?
Pós-Guerra Fria e o
“Encurralamento” da Rússia
Com a queda do Muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética foi
anunciado o fim da Guerra Fria, já que aqueles dois constituíam os marcos
principais da contenda. Artigos e livros foram publicados anunciando o fim.
Neste esforço da academia em explicar o que estava a acontecer destaca-se o
artigo de Francis Fukuyama, mais tarde transformado em livro, O Fim da História
e o Último Homem. Nesse artigo, Fukuyama teria definido a história como o
confronto de ideologias e, dado que a União Soviética, o símbolo da ideologia
comunista, havia se desmembrado, o autor considerava que a história havia
chegado ao fim. Ao dizer isso, o autor pretendeu enfatizar a tese de que o
liberalismo e o capitalismo haviam triunfado e que nenhuma outra ideologia
parecia estar à altura de contrapô-los. Mas será que a Guerra Fria teria
chegado ao fim pela mera queda do Muro de Berlim e desmembramento da União
Soviética?
A herdeira-mor da extinta União Soviética é a Rússia. Ela herdou os
aspectos mais importantes da defunta União Soviética, com destaque para o
assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Na década de
1990 a Rússia estava concentrada em se reconstruir e se afirmar com a nova
identidade provinda de 1991. Enquanto isso, os seus antigos adversários
Europeus da Guerra Fria procuravam consolidar a sua cooperação, tendo culminado
no estabelecimento da União Europeia (UE) e adopção de uma moeda única. Pouco a
pouco, e embora se tenha anunciado o fim das rivalidades da Guerra Fria, a UE
foi “encurralando” a Rússia. Isso ocorreu por via de uma política deliberada de
incentivar os antigos aliados da União Soviética a juntarem- se à UE. Assim, a
política de alargamento da União Europeia com vista à entrada de novos membros,
particularmente da Europa do Leste, é vista por Moscovo como uma ameaça à sua
existência.
Os esforços do Ocidente rumo ao “encurralamento” da Rússia iniciaram mesmo
com a reunificação da Alemanha, pois implicou que a Alemanha Oriental, outrora
zona de influência Soviética, passava para o outro lado. Alegando sucessos na
geração de prosperidade e promoção de cooperação pacífica entre os seus
membros, a UE tem conseguido atrair países anteriormente sob influência da
Rússia para o seu lado. Em 2004, oito antigos países comunistas juntaram-se à
UE – República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, Eslováquia
e Eslovénia. Três anos mais tarde, em 2007, juntaram-se à união a Bulgária e a
Roménia. Estes alargamentos ocorrem sob olhar de preocupação de Moscovo, que vê
os seus países vizinhos e suas esferas de influência se baldarem para o outro
lado da Europa. O alargamento torna-se mais preocupante se tivermos em conta
que tais países, ao se aliarem à UE, tornam-se igualmente membros da OTAN, uma
aliança militar que era um dos pilares da Guerra Fria mas que não foi desfeita
tal como aconteceu com o Pacto de Varsóvia.
Recuperação de Esferas de
Influência?
Com os eventos de 2004 e em 2007, onde vários antigos países comunistas se
juntaram à UE, a Rússia mostrou que qualquer outra tentativa de cooptação de
mais Estados – para a união ou para a OTAN – que ela considera de pertença de
sua esfera de influência não ocorreria de forma “pacífica”. Com efeito, na sua
política de “encurralar” a Rússia, a OTAN deu mostras de abertura para a
entrada da Geórgia e da Ucrânia na aliança. Em 2008, a liderança da Geórgia,
confiante de um eventual apoio da OTAN para dissuadir a Rússia, bombardeou a
Ossétia do Sul, alegando ter havido uma provocação por parte daquela região
autónoma. Contudo, as intentonas Georgianas tinham em vista reivindicar o
território que, depois da guerra de 1991-92, era controlada por um governo
apoiado por Moscovo.
Os ataques da Geórgia contra a Ossétia do Sul deram uma “desculpa” perfeita
à Rússia para demonstrar ao mundo, e aos vizinhos Europeus em particular, que
ela continua a ser uma potência a ter em conta no concerto das nações. Em
poucos dias de confronto, as forças da Geórgia foram derrotadas e a Ossétia do
Sul e a Abkhazia auto-proclamaram-se independentes. Sob oposição das
autoridades da Geórgia e forte condenação pela “comunidade internacional”, a
Rússia reconheceu de imediato os actos de declaração de independência.
Ucrânia: o Último Reduto
Uma pergunta lógica que as pessoas se colocam está em relação ao porquê da
Rússia envolver-se na Ucrânia, com as potenciais consequências que isso possa
lhe trazer. O facto é que o controlo ou exercício de influência sobre a Ucrânia
constitui uma das questões de segurança nacional para Moscovo. O Ocidente, na
sua hipocrisia, alega que a Rússia está a violar direito internacional ao
introduzir forças no país e ao permitir que se realizasse o referendo do
passado domingo com vista a decidir se a Crimeia juntava-se à Rússia ou não. O
argumento da legalidade da acção pode até ser verídico, mas nas relações
internacionais o que prevalecem são os interesses nacionais, e se esses são de
uma grande potência, não há direito ou organização que possa fazer algo.
O desmembramento da União Soviética fez com que a Rússia, sua herdeira
natural, tivesse dificuldades de acesso ao mar por águas quentes. Em virtude
disso, e por via de um acordo assinado em 1997, as autoridades Ucranianas
permitiram que a Rússia mantivesse a sua frota naval ao largo do Mar Negro e
uma base militar na cidade portuária de Sevastopol. A duração do acordo estava
prevista para um período de vinte anos mas, em 2008, algumas vozes Ucranianas
exteriorizavam a sua vontade de não renovar o acordo quando expirar em 2017.
Contudo, a Rússia, fazendo uso da sua arma do gás natural, pressionou as
autoridades Ucranianas, em 2010, a estender o prazo do aluguer até o ano 2042.
A crise política na Crimeia afigura-se como um dos pontos mais altos de uma
Guerra Fria que no discurso político e “académico” tinha chegado ao fim, mas
que as reais acções dos seus actores mostram o contrário. A expansão da OTAN,
que conseguiu ter nas suas fileiras a maior parte dos antigos aliados da União
Soviética, aparece como uma ameaça real a segurança de uma Rússia que ainda se
ressente com a perda das suas esferas de influência. A Ucrânia está localizada
na “varanda” da Rússia. Uma eventual parceria da Ucrânia com a OTAN significa o
posicionamento de forças do Ocidente do outro lado da fronteira Russa, e isso é
algo que Moscovo não pretende permitir. E quando falamos de forças do Ocidente
não nos referimos apenas às forças da Europa Ocidental, mas sim às forças dos
EUA, o antigo rival da Guerra Fria.
Artigo publicado no Jornal Debate http://www.debatemoz.com/?p=310
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