sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Os “pecados capitais” do plano de paz de Donald Trump

O presidente dos EUA anunciou, recentemente, o seu tão esperado plano de paz para pôr termo ao conflito israelo-palestiniano. Aclamado por uns e desdenhado por outros, o plano de Trump traz consigo, à partida, alguns pecados capitais. Quando se olha para o comportamento das partes, as causas da longa conflitualidade e a forma como o plano foi apresentado, pode dizer-se que o plano de paz trumpiano está condenado à morte antes mesmo do início da sua implementação.

Basicamente, o plano proposto pelo presidente dos EUA preserva a ideia da criação de dois Estados: um para os Judeus (já criado em 1948) e um para os Árabes (ainda por criar) na Palestina. Na verdade, esta solução foi esboçada pelas Nações Unidas, quando esta organização aprovou, em 1947, a Resolução 181, e foi reforçada por várias resoluções subsequentes, com destaque para a Resolução 242 do Conselho de Segurança (em 1967), aprovadas no contexto do conflito israelo-árabe/palestiniano. O plano de Trump propõe também que Jerusalém seja considerada “capital indivisível” de Israel e que os territórios ocupados por este país, diga-se ilegalmente, na Cisjordânia sejam “legalizados”, para além de exigir o reconhecimento do Vale do Jordão como de soberania israelita. Em benefício dos palestinianos os EUA prometem biliões de dólares em investimento, que podem gerar milhares de empregos e promover o desenvolvimento da Palestina.

Um dos modelos mais simples para a análise de conflitos identifica quatro elementos básicos sobre os quais o analista deve basear-se para compreender um determinado conflito, ou então as tentativas de sua resolução. São eles o contexto, as partes, as causas e a dinâmica do conflito. Para efeitos da análise que se pretende neste artigo interessam apenas as partes e as causas, pois a sua complexidade faz prever maior resistência dos palestinianos em relação ao plano.

Quando se fala de partes, são identificáveis três tipos: as primárias (donos do conflito), as secundárias (apoiantes dos donos do conflito) e as terciárias (terceiros que tentam ajudar as partes primárias a pôr termo ao conflito). Este espaço não é suficiente para, com detalhes, identificar e descrever as partes do conflito. No entanto, é óbvio dizer que as partes primárias do conflito israelo-palestiniano são o Estado de Israel e a Palestina. No geral e numa análise simplificada, pode-se dizer que os Estados árabes são os apoiantes da Palestina e, do lado de Israel, os EUA têm se mostrado como seu apoiante “incondicional”. Como parte terciária, ainda que muitos actores possam reunir condições para essa categoria, identificamos aqui as Nações Unidas.

O primeiro pecado capital do plano de Trump reside no comportamento da parte secundária EUA. Desde a eclosão do conflito israelo-árabe/palestiniano os EUA têm desempenhado um papel duplo. Se, por um lado, se assumem como apoiantes incondicionais de Israel, endossando a maioria das, senão todas, iniciativas israelitas em relação à Palestina, o que a torna parte secundária, por outro, procuram liderar os esforços tendentes a pôr-se fim ao conflito, o que a tornaria uma parte terciária. Este papel dúbio dos EUA torna-se “pecado capital” para qualquer iniciativa de paz deste país pela sua dificuldade em separar as duas posições. Aliás, a forma como o plano de Donald Trump foi anunciado, com a presença e sorriso cúmplice do primeiro-ministro de Israel e sem nenhuma representação dos palestinianos, denuncia a dubiosidade e o favorecimento que a administração norte-americana faz a uma das partes primárias ignorando a outra.

O segundo pecado do plano está no conteúdo da proposta, que na verdade reflecte alguns dos pontos mais sensíveis do conflito, isto é, os factores que causam a perpetuação da contenda. Das questões mais sensíveis no conflito pode-se destacar o território, ou fronteiras, Jerusalém e os refugiados. Sobre o território, o plano de partilha de 1947 colocava a Faixa de Gaza e a Cisjordânia como os espaços onde se estabeleceria o Estado palestiniano. Na primeira guerra Israel amealhou mais território do que o previsto em 1947 e muita gente fugiu, ou foi expulsa, facto que originou a problemática dos refugiados. Na guerra de 1967 Israel ocupou a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, mas a Resolução 242, que impôs o cessar-fogo, exigiu a devolução dos territórios ocupados. No processo de paz lançado na década de 1990 os palestinianos recuperaram a Faixa de Gaza, mas os israelitas continuaram a ocupar a Cisjordânia. O plano de Trump pretende que a ocupação israelita, materializada pelos colonatos, seja legalizada.

No plano de partilha, Jerusalém, dada a sua sensibilidade, ficaria sob gestão internacional. Porém, nas várias guerras travadas, Israel ocupou-a e considera-a sua capital, apesar da “resistência da comunidade internacional”. Mas os palestinianos também consideram Jerusalém como capital do seu futuro Estado. O plano de Trump peca “capitalmente” por considerar que esta cidade seja considerada “capital indivisível” do Estado de Israel. Aliás, o plano parece contraditório quando sugere a indivisibilidade de Jerusalém ao mesmo tempo que refere que parte da cidade, a Oriental, seja capital da Palestina.

Quando há guerras é natural que muita gente se desloque dentro do seu próprio país ou se refugie em outros países. Terminada a guerra, é também natural que as pessoas regressem às suas zonas de origem, ou às suas casas. Na primeira guerra israelo-árabe milhares de palestinianos se refugiaram nos países vizinhos. No fim da guerra, as autoridades israelitas, que ocuparam o território previsto para o Estado palestiniano, não permitiram o regresso dos refugiados. O plano de partilha peca igualmente por não abordar as reivindicações palestinianas sobre o direito ao retorno.

Um último pecado capital que se pode abordar neste artigo é a excessiva confiança trumpiana de que os dólares resolvem tudo. As propostas de alienação das vontades dos palestinianos baseiam-se na crença de que a promessa de investimento na criação de empregos e desenvolvimento é suficiente para os palestinianos aceitarem o plano. Porém, nos estudos de conflito existem alguns aspectos, as necessidades e os valores, que não são passíveis de “venda”. Aliás, numa rara concordância de posições, as diferentes facções palestinianas, com destaque para a Autoridade Palestiniana e o Hamas, já vieram a público rejeitar peremptoriamente o plano. Outros pecados capitais podem ser identificados, especialmente ligados ao timing da sua publicação, mas essa é matéria para uma outra reflexão.

 


Estará Trump a tentar redefinir as fronteiras dos Estados do Médio Oriente?

Nos seus habituais comentários nas redes sociais, na passada quinta-feira o presidente dos EUA, Donald Trump, mostrou mais uma vez que não tem apreço ao direito internacional ou às decisões da Organização das Nações Unidas. Talvez acreditando no potencial de reduzir a influência do Irão no Médio Oriente, o presidente norte-americano “pontapeou” as normas internacionais e sugeriu que é chegado o momento de o seu país reconhecer a soberania israelita sobre os Montes Golã. Trump justifica a sua sugestão alegando a relevância estratégica e securitária que os montes Golã representam para Israel e para a estabilidade da região do Médio Oriente. Após decidir mudar a embaixada dos EUA de Tel Aviv para Jerusalém, o seu recente anúncio mostra o seu desdém em relação ao direito internacional quando se trata de “proteger” seus aliados ou tentar punir seus inimigos. Porém, a efectivar-se essa intenção, o Estado de Israel arrisca-se a enfrentar uma cada vez maior oposição à sua existência no Médio Oriente.

Pela Resolução 181, de 1947, Jerusalém, dado o seu valor simbólico, ou religioso, tanto para os árabes como para os judeus, devia estar sob administração internacional. Ou seja, nenhum dos dois Estados (um para os árabes e outro para os judeus) a serem criados, na altura, devia reivindicar o território de Jerusalém como seu. Porém, com o estabelecimento do Estado de Israel em 1948 e a consequente eclosão do conflito israelo-árabe/palestiniano, o controlo de Jerusalém tem sido motivo de tensão entre Israel e os Estados árabes. Aliás, na primeira guerra israelo-árabe, Jerusalém chegou a ser dividida, em termos de ocupação, entre Israel e a Transjordânia (hoje Jordânia).

Após várias guerras entre Israel e os Estados árabes, as Nações Unidas procuraram sempre manter o estatuto de Jerusalém como um território internacional. Com isso, a maior organização mundial refutava a reivindicação israelita, mas também palestiniana, sobre a soberania sobre Jerusalém, de tal modo que a capital israelita reconhecida foi sempre Tel Aviv. Por essa razão, a ONU sempre recomendou, e quase todos Estados do mundo assim agiram, que as representações diplomáticas dos Estados em Israel tivessem a sua sede em Tel Aviv. Porém, ao ascender à Casa Branca, Trump desfez essa prática diplomática ao anunciar a transferência da embaixada do seu país para Jerusalém. Tal decisão, criticada pela comunidade internacional por violar o direito internacional, parece não ter sido um caso isolado da política externa da actual maior potência mundial. O executivo norte-americano parece mesmo estar interessado em redefinir as fronteiras dos Estados do Médio Oriente.

A recente sugestão de que os Montes Golã devem ser reconhecidos como parte do território de Israel é mais uma demonstração de que na defesa dos seus aliados os EUA estão dispostos a violar o direito internacional. Pelas fronteiras (artificiais) traçadas após o término da Primeira Guerra Mundial, os Montes Golã foram reconhecidos como território soberano da Síria. Porém, no decurso da terceira guerra israelo-árabe em Junho de 1967, também conhecida como Guerra dos Seis Dias, Israel ocupou a maior parte dos Montes Golã e decidiu anexá-los efectivamente em 1981. Contudo, a comunidade internacional nunca reconheceu tal anexação. Aliás, a Resolução 242 das Nações Unidas, que pôs fim à Guerra dos Seis Dias, estatuía claramente a proibição da aquisição de território por via da guerra e impunha a obrigatoriedade de as partes beligerantes retirarem-se dos territórios ocupados. 

Embora aplaudida pela liderança israelita, a decisão de Trump tem o potencial de criar uma maior oposição ao Estado de Israel na região do Médio Oriente. A existência em si do Estado de Israel não tem sido acolhida de bom grado pelos árabes. O reconhecimento dos EUA da ocupação de mais território árabe por Israel pode unir ainda mais os árabes na sua luta contra Israel. Aliás, é preciso lembrar que o Hezbollah, do Líbano, é um grupo que surgiu em oposição ao território libanês ocupado por Israel após a invasão deste último ao primeiro em 1982. Com efeito, ainda que haja divergências nos diferentes grupos sírios que lutam pelo derrube do regime de Assad, a defesa do território sírio pode ser um elemento de unificação contra a ameaça israelita. Ao invés de garantir a segurança do Estado de Israel, o reconhecimento da soberania israelita sobre os Montes Golã, que à luz do direito internacional pertencem à Síria, pode fazer (re)emergir os sentimentos anti-israelitas na região e alimentar mais grupos radicais que podem ameaçar a segurança daquele Estado. Portanto, ao invés de estabilidade regional, o eventual reconhecimento pode aumentar ainda mais o nível de instabilidade que o Médio Oriente vive.


Artigo publicado no Jornal Domingo. Disponivel em https://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/arquivo/15-internacional/11702-estara-trump-a-tentar-redefinir-as-fronteiras-dos-estados-do-medio-oriente