sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Os Acordos de Oslo – a “colonização” israelita da Palestina

Quando Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e da Autoridade Palestiniana até a sua morte em 2004, assinou os acordos de Oslo II, em Setembro de 1995, estava convencido que a criação do Estado palestiniano estava para breve. Porém, passam 23 anos e o estabelecimento do Estado palestiniano continua uma miragem. Os críticos já haviam alertado sobre os perigos da assinatura daquele compromisso, mas o optimismo do líder da OLP vincou. Tal como temiam os críticos, com o acordo Israel garantiu a legalização da “colonização” sobre a Cisjordânia e consolidou a sua presença no território. A isso se adiciona o facto de as acções da “parte terciária” ao conflito, os EUA, serem favoráveis à manutenção da “colonização” judaica sobre a Palestina.

O conflito israelo-árabe teve o seu início em 1948, quando os judeus declararam o estabelecimento do Estado de Israel a 14 de Maio e, no dia seguinte, forças de cinco países Árabes invadiram o recém-estabelecido Estado. Desde a formação de Israel foram travadas quatro guerras israelo-árabes até 1973. Depois da derrota árabe de 1967 e da assinatura dos Acordos de Camp David em 1978/9, o conflito ficou mais direccionado para a dimensão israelo-palestiniana. Em Setembro de 1993, o governo israelita e a OLP assinaram o que ficou conhecido como Acordos de Oslo, corporizados pelo reconhecimento mútuo e pela Declaração de Princípios.

Na Declaração de Princípios acordou-se a retirada Israelita de Gaza e Jericó; o estabelecimento de uma força policial Palestiniana para a segurança interna; eleições para uma Autoridade Palestiniana; a transferência da autoridade para os Palestinianos em relação à educação e cultura, saúde, bem-estar social, impostos directos e turismo; a realização de negociações sobre o status final, que iniciariam em dois anos, e o alcance do acordo final em cinco anos. Dois anos mais tarde assina-se o Oslo II, também conhecido como Acordo de Taba, Segunda Fase ou Acordo Interino.

Oslo II estabeleceu zonas de controlo, na Cisjordânia, para os Palestinianos e Israelitas. A Zona A (3%) seria controlada pelos palestinianos; a Zona B (24%) teria controlo conjunto israelo-palestiniano; a Zona C (73%) sob controlo israelita. Na interpretação do acordo, Yasser Arafat acreditava que tanto a zona B como a Zona C em breve passariam para o controlo exclusivo palestiniano e, com isso, estabelecer-se-ia o Estado. Por seu turno, Yitzhak Rabin congratulava-se por ter conseguido um acordo que garantia ao Estado Judeu a “colonização” (controlo) de 73% do território, 80% da água e 97% dos arranjos de segurança. Aliás, Israel conseguiu que a OLP reconhecesse o seu direito de existência mas, em contrapartida, Israel reconheceu a OLP como representante do povo palestiniano mas não reconhece o direito da existência da Palestina como Estado independente e soberano.

No presente mês de Setembro, que hoje termina, passam 23 anos desde a assinatura de Oslo II. Porém, o almejado Estado continua uma miragem. Tal como tinham previsto os críticos palestinianos ao acordo, os relatos referem que a liberdade de passagem entre as cidades e vilas foi substituída por postos de controlo e recolheres obrigatórios; a autonomia reduziu a liberdade; as Zonas A e B parecem ilhas de autonomia Palestiniana cercadas pelo controlo israelita. Enquanto isso, os colonatos judaicos interligam-se por estradas que permitem aos colonos uma livre mobilidade. Ou seja, Oslo II permitiu a legalização e consolidação da “colonização” Israelita sobre os territórios palestinianos.

Em resultado da “colonização” israelita, vários grupos palestinianos, com destaque para o Hamas, ganharam notoriedade nos territórios ocupados. Em 2006 este grupo venceu as eleições em Gaza, numa altura em que, aparentemente, Israel dava sinais de pretender retirar-se dos territórios. A ascensão do Hamas, rotulado como grupo terrorista, levou ao recrudescimento de ataques de ambos os lados da fronteira, numa espiral de violência da qual parece não haver fim a vista. 

Desde os meados da década de 1970 os EUA posicionaram-se como a potência com a capacidade para desempenhar o papel de “parte terciária”. Porém, os vários governos deste país não conseguiram ajudar as partes a alcançarem a paz. O governo de Trump, particularmente, não parece estar interessado em ver uma Palestina independente. Aliás, desde que tomou posse, o governo de Trump tem minado o processo de paz: reconheceu a sensível Jerusalém como capital de Israel; retirou o financiamento à UNRWA (Agência das Nações Unidas para a Assistência aos Refugiados da Palestina); e há algumas semanas anunciou o cancelamento da missão diplomática palestiniana em Washington. Portanto, de uma posição de “parte terciária”, que se esperaria ser neutra, os EUA agem como uma “parte secundária”, tomando posição favorável à “colonização” israelita da Palestina.



Artigo publicado no Jornal Domingo. Disponível em http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/internacional/10831-acordos-de-oslo-a-colonizacao-israelita-a-palestina

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O dia que as coreias se reunificarem…


Divididas por interesses exógenos, nos últimos meses as duas coreias têm dominado as manchetes da imprensa internacional. O líder do norte não só predispôs-se a sentar, à mesma mesa, com o presidente dos EUA, seu “maior inimigo”, como também, na sentada, aquele disse estar disposto a desmantelar o seu programa nuclear. Os debates que se seguiram concentraram-se em analisar o alcance das promessas de Kim Jong-un. Porém, importa também fazer uma reflexão sobre as implicações do relaxamento de tensões que se verifica entre as duas Coreias. Poderá o corrente “desanuviamento” corrigir a “injustiça histórica” de a família coreana ter sido separada pelos apetites da ocidentalmente baptizada como “guerra fria”?

O debate em torno do alcance da promessa norte-coreana sobre a desnuclearização é dominado entre os parcialmente optimistas e os detractores do regime norte-coreano. Os parcialmente optimistas acreditam que o regime comunista da Coreia do Norte chegou a um ponto de ebulição, no sentido de que o país está a viver dificuldades económicas que não mais lhe permitem continuar com a sua recorrente postura combativa. Portanto, as promessas de Kim são consideradas uma rendição, um reconhecimento de que ceder às exigências dos EUA é a única via para a sobrevivência do regime e do Estado. Assim, os norte-coreanos acreditam que a desnuclearização abrirá as portas para o levantamento das sanções económicas sobre o país e, com isso, poderão ter acesso ao capital para o desenvolvimento económico. Deste modo, acredita-se que as promessas de Kim são “genuínas”.

Os detractores do regime norte-coreano, por seu turno, não acreditam na sinceridade das promessas. A base do seu argumento é a mesma dos parcialmente optimistas, divergindo com aqueles no resultado que consideram ser o que Kim deseja. Assim, consideram que o discurso de abertura à desnuclearização não passa de uma estratégia não só para garantir que as sanções sejam levantadas, como também para, a partir disto, acelerar, graças aos recursos que poderão ser drenados ao país, ainda mais o desenvolvimento de armas nucleares.

Sejam quais forem as intenções de Kim, o facto é que o relaxamento das tensões entre as partes está a permitir que várias famílias, há décadas separadas, tenham a oportunidade de mais uma vez, talvez a última, se avistarem. Mais do que isso, este desanuviamento remete a uma reflexão em torno das suas implicações nas relações intra-coreanas: será esta uma oportunidade para a reunificação? Estarão as grandes potências interessadas numa Coreia reunificada?

Da parte dos coreanos parece haver clareza sobre a sua vontade de ver o país reunificado. Mesmo ao nível das lideranças essa parece ser também a vontade: o governo do Sul possui um Ministério específico responsável por estudar os caminhos para a reunificação; Kim Jong-un tem dito que o empecilho para a normalização das relações intra-coreanas, e da eventual reunificação, tem sido o facto de o Sul ser subserviente aos EUA.

A reunificação parece não ser vista com “bons olhos” pelas grandes potências. Uma Coreia reunificada pode significar a emergência de uma terceira força no jogo pelo domínio do sistema internacional, se se considerar que os adversários pela hegemonia são os EUA (em declínio) e a China (em ascensão). Dados do Goldman Sachs indicam que uma Coreia reunificada pode ultrapassar o Japão ou a Alemanha em tamanho e influência, países que no ranking das economias mais ricas ocupam o terceiro e quarto lugares, respectivamente. A reunificação significaria a combinação de minerais e mão-de-obra barata em abundância do Norte com a evoluída e já estabelecida, mas importadora de matérias-primas, indústria do Sul. Se à dimensão económica se acrescer a dimensão militar, que inclui armas nucleares, do Norte, ter-se-ia uma grande potência com possibilidades de almejar o estatuto de potência dominante.

Dos cálculos do anterior parágrafo dá para perceber a vontade das grandes potências, especialmente os EUA e a China, não quererem abdicar do “controlo” que exercem sobre as coreias, especialmente a intenção de desnuclearizar a Península. A sua reunificação com as capacidades económicas do Sul e militares do Norte pode “baralhar” o balance of power (equilíbrio de poder) que se verifica no sistema internacional. Aos EUA, que estão empenhados em impedir que a China ou outra potência os suplante no topo da hierarquia de poder no sistema, não interessa ver emergir mais uma “dor de cabeça”. À China, que almeja suplantar os EUA em status no sistema, não interessa ver um concorrente do outro lado da sua fronteira. Estas são algumas contas em jogo para “o dia que as coreias se reunificarem”.

Artigo publicado no Jornal Domingo. Disponível em http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/internacional/10797-o-dia-em-que-as-coreias-se-reunificarem
Artigo Publicado no Jornal Domingo. Disponível em http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/internacional/10797-o-dia-em-que-as-coreias-se-reunificarem

domingo, 16 de setembro de 2018

TPI: O Tribunal que Não Deve Tocar “Criminosos” das Grandes Potências


O conselheiro de Segurança Nacional do presidente dos Estados Unidos da América (EUA), John Bolton, avisou, no passado dia 10 de Setembro, aos juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI) para não se atreverem a chamar potenciais “criminosos” norte-americanos para aquela instituição, sob pena de serem julgados e condenados em tribunais dos EUA. A ameaça de Bolton vem a propósito de o TPI, instituição responsável por investigar, julgar e, eventualmente, condenar indivíduos acusados de cometer crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídios, ter anunciado estar disposta a investigar os crimes que o exército dos EUA e a Agência Central de Inteligência (CIA) são acusados de ter cometido nas prisões secretas que controlam no Afeganistão. A reacção dos norte-americanos, por um lado, confirma a ideia de que as instituições internacionais são somente úteis quando satisfazem os interesses das grandes potências no sistema internacional e, por outro, confirma o receio dos críticos de que o Tribunal foi criado para policiar os Estados “fracos”, principalmente do continente africano.

Iniciando pelo argumento da (in)utilidade do TPI para as grandes potências, esta não é a primeira vez que o tribunal é “desacreditado” em torno de investigações de casos de crimes cometidos por indivíduos de uma grande potência. No contexto da invasão anglo-americana ao Iraque, algumas figuras de proa, como o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, sugeriram que George W. Bush e Tony Blair, antigos Presidente dos EUA e Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, respectivamente, deviam ser apresentados à barra do tribunal. Um tribunal de Kuala Lumpur chegou mesmo a julgar e condenar os dois líderes a revelia. Porém, o TPI nada fez mesmo em face de acusações de todos os quadrantes sobre as “inverdades engendradas” pelos dois líderes – por exemplo sobre a posse, pelo Iraque, de armas de destruição em massa – para invadirem o Iraque. A invasão terá resultado na destruição do país e na matança de milhões de iraquianos.

No caso que está agora nas manchetes dos jornais internacionais os americanos pretendem alcançar dois interesses. Em primeiro lugar, a ameaça ao TPI tem em vista dissuadir os seus juízes a prosseguir com investigações de eventuais crimes cometidos por pessoal norte-americano destacado no Afeganistão. A este respeito os norte-americanos ameaçam congelar bens e propriedades que estejam nos EUA ou verbas monetárias que estejam no circuito financeiro por si controlado. No seu discurso dramático, Bolton chegou mesmo a declarar a “morte do TPI”.

Em segundo lugar, a advertência dos EUA é feita para a protecção do Estado de Israel, seu aliado natural. Aliás, os EUA estão tão empenhados em proteger Israel que procuram, sempre que possível, silenciar e enfraquecer o “inimigo” do Estado Judeu – a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Ao insurgir-se contra o TPI, Bolton, corroborado pela porta-voz da Casa Branca, fez saber que os EUA estão dispostos a usar “quaisquer meios necessários” para proteger seus cidadãos, de Israel ou de outros aliados. Sucede que a OLP está a encetar diligências para submeter ao TPI uma queixa contra Israel, acusando este Estado de estar a cometer crimes na Faixa de Gaza. Como que a evidenciar a materialização da expressão “uso de quaisquer meios necessários”, o conselheiro anunciou o encerramento da representação diplomática da OLP em Washington.

A reacção dos EUA, e das grandes potências no geral, tem também o efeito de confirmar os receios dos críticos à actuação do TPI em dois aspectos. Primeiro, as actuais maiores potências do sistema internacional – EUA, Rússia e China – não são membros do tribunal. No entanto, um dos requisitos para a credibilidade e funcionamento dos regimes e das instituições internacionais é precisamente a adesão e engajamento das grandes potências.

Segundo, quando o tribunal pretende investigar e julgar acusações de crimes contra indivíduos das grandes potências, tal é o caso dos EUA, estas ou não colaboram ou ameaçam a integridade física e psicológica dos juízes. Entretanto, quando os casos a serem apresentados ao tribunal são de países relativamente fracos, principalmente de África, os casos são investigados, mandatos internacionais de captura são emitidos e os acusados são julgados e condenados. Por exemplo, dados de Novembro de 2016 mostravam que estavam sob investigação 10 casos, dos quais 9 de crimes alegadamente cometidos por indivíduos de e em países africanos. Dados gerais mostravam que contra indivíduos africanos o TPI indiciou 39, emitiu mandatos de captura contra 31 e instaurou processos contra 22.


Artigo publicado no Jornal Domingo. Disponível em http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/internacional/10762-tpi-o-tribunal-que-nao-deve-tocar-criminosos-das-grandes-potencias

domingo, 9 de setembro de 2018

Os Milhões de Dólares da China para África – Presente Envenenado?


Terminou, no passado dia 4 de Setembro, a Cimeira China-África em que os chineses mais uma vez predispuseram-se a “gastar” vários milhões de dólares em África. O que as lideranças africanas vêm como uma bênção para ultrapassar os problemas de subdesenvolvimento, os críticos, particularmente do Ocidente, alertam que as investidas chinesas em África carregam consigo uma espécie de “presente envenenado”. Esta natural discordância entre os apoiantes e os retartadários da presença da China em África pode ser lida sob três prismas: o das lideranças africanas e seus apoiantes; o dos retartadários da expansão do poder da China na economia política global; e o dos cautelosos.

No prisma das lideranças africanas o aumento da “bondade” chinesa é um alívio em relação às “complicadas” relações com os tradicionais parceiros do Ocidente. Enquanto os ocidentais querem “intrometer-se” nos assuntos internos dos Estados africanos ao conceder empréstimos, os chineses advogam o estrito respeito da soberania dos Estados. O acesso a empréstimos de instituições financeiras ocidentais é condicionado ao cumprimento de determinados requisitos políticos, inclusive na definição de prioridades nas agendas nacionais de desenvolvimento. O acesso aos empréstimos chineses, por seu turno, é considerado mais amigável por ser uma questão de business as usual, ou seja, os Estados aplicam as verbas concedidas nos sectores que considerarem prioritários desde que cumpram com as suas obrigações na devolução das somas recebidas.

As lideranças africanas e os seus apoiantes acreditam que a relação com a China é reflexo de uma “cooperação win-win” (ganha-ganha) rumo à edificação de uma “comunidade de destino comum”. Nessa base, a expansão da China é interpretada como a emergência de uma “nova ordem económica mundial”, provavelmente equiparável àquela que era exigida pelos países do Terceiro Mundo nas décadas de 1970 e 1980.

No prisma dos detractores da ascensão da China na economia política global enquadram-se os conservadores, aqueles que são resistentes à mudança nas relações internacionais, que são apologistas da manutenção do status quo. Ou seja, os políticos ou analistas pró-ocidentais, que querem continuar a ver o Ocidente como o “guia” da economia política global, vêm em tudo que a China faz em Áfria uma ameaça ao poder ocidental. Portanto, eles consideram os empréstimos chineses como contrários às normas de convivência de uma sociedade “civilizada”, por supostamente não respeitarem os valores da democracia liberal e dos direitos humanos. Aliás, os detractores consideram que a “bondade” chienesa está a levar alguns países a um nível de endividamento tal que, eventualmente, os africanos podem ser “controlados” pelos chineses caso não sejam capazes de honrar com os seus compromissos em relação às dívidas.

Em função dos argumentos apresentados no parágrafo anterior, os detractores aconselham os africanos a consolidar mais as relações com os tradicionais parceiros do Ocidente, por estas garantirem “maior transparência” e respeito pelos direitos humanos. Aliás, segundo esta posição, se os africanos continuarem a apostar na China para resolver os seus problemas correm o risco de se tornarem dependentes daqueles.

No terceiro prisma, o dos cautelosos, situam-se aqueles que procuram encontrar os méritos e os deméritos dos dois anteriores prismas. Este prisma reconhece tanto os potenciais benefícios da consolidação das relações China-África, como também os riscos de uma eventual “colonização chinesa de África”. Por essa razão, os cautelos aconselham os africanos a receber os “presentes” chineses com cautela para, por um lado, alavancar o desenvolvimento do continente, ao mesmo tempo que, por outro, mitigam os efeitos negativos do referido “presente envenenado”.

A terminar este artigo, nos cautelosos pode dizer-se que se enquadram aqueles que consideram que a ascensão da China é benéfica para África. Porém, isso não significa que o continente africano deve abandonar ou marginalizar as suas relações com os tradicionais parceiros do Ocidente. O significado disto é que os “milhões de dólares chineses” são uma oportunidade para África não depender somente das instituições controladas pelo Ocidente. Portanto, o aparecimento de novos polos de poder económico, como a China ou outros, dá aos africanos uma acrescida “capacidade negocial” no relacionamento com os diferentes parceiros económicos para o acesso a financiamentos para as suas agendas de desenvolvimento.






segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Nações Unidas Dão Nota Positiva ao Irão


A Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), o braço das Nações Unidas responsável por monitorar as actividades de enriquecimento de urânio do Irão, deu nota positiva ao Irão e afirma que a República Islâmica está a cumprir com as suas obrigações. Num relatório publicado no passado dia 30 de Agosto, a AIEIA confirma que o Irão “manteve os níveis de enriquecimento de urânio” tal como estipulado no Acordo Nuclear assinado em 2015. O ainda engajamento do Irão sobre acordo pode ser lido sob três perspectivas: uma relativa ao próprio Irão, uma relativa aos EUA e uma relativa à comunidade internacional no geral.

O cumprimento do acordo nuclear por parte do Irão pode ser explicado por motivações estratégicas tendentes a retirar o país do “isolamento”. Desde a Revolução Islâmica de 1979 houve sempre a tentativa de o país ser considerado um pária. A conjugação da revolução islâmica, do desenvolvimento do programa nuclear e das acusações de apoiar grupos terroristas levaram ao seu isolamento e, até, à imposição de sanções sobre o país. O Irão chegou mesmo a ser rotulado como sendo do eixo do mal. Portanto, o cumprimento de um acordo que foi promovido pelos EUA e pelas outras grandes potências do sistema internacional não só possibilita a retirada da rotulagem negativa ao país, como também abre espaço para o alívio das sanções económicas.

A subida de Trump ao poder fez, contudo, retroceder as aspirações iranianas referidas no parágrafo anterior. Os EUA não só “rasgaram” o acordo nuclear iraniano, como também re-impuseram as sanções económicas. Porém, os iranianos mantiveram-se firmes no cumprimento do que foi acordado. Esta postura pode ser explicada, por um lado, pela necessidade de o Irão mostrar ao mundo que, afinal, tem vindo a ser “injustiçado” e que o problema no programa nuclear não é o Irão mas sim os EUA. Mantendo-se no acordo o Irão passa a mensagem de que é um fiel cumpridor das normas internacionais. Por outro lado, o Irão aproveita-se dos “desentendimentos” entre as potências ocidentais para poder encontrar parceiros alternativos para a satisfação dos seus interesses. Aliás, os actores da União Europeia já se mostraram favoráveis em continuar a implementar o acordo nuclear mesmo sem os EUA.

Na perspectiva relativa aos EUA, a sua decisão “solitária” em abandonar o acordo nuclear pode ser vista sob duas dimensões. Primeiro, “o tiro saiu pela culatra para a administração Trump”. O actual governo da Casa Branca ainda acreditava que qualquer comando seu o resto do mundo seguiria às cegas. O presidente dos EUA nunca acreditou, e talvez ainda não acredita, que os seus “obedientes” aliados da União Europeia poderiam lhe “abandonar”. A verdade, porém, é que os aliados não só lhe abandonaram como também começam já a “ensaiar” discursos europeístas de segurança. (Voltando a retóricas gaulistas do século passado, o presidente francês disse recentemente que “a Europa não deve depender somente dos EUA para garantir a sua segurança”).

A segunda dimensão desta perspectiva é que o problema da administração Trump pode não estar necessariamente no acordo nuclear mas sim na sua vontade de ver uma mudança de regime no Irão. À excepção dos EUA, todos os outros intervenientes do acordo nuclear mantêm-se firmes na sua implementação. O relatório da AIEA confirma que o Irão não elevou os níveis de enriquecimento de Urânio. A comunidade internacional, no geral, não só apoia o Acordo como também virou as costas aos EUA sobre esta matéria. Portanto, a outra explicação aceitável para esta postura é que a re-imposição das sanções tem em vista desestabilizar economicamente a república islâmica na expectativa de, com as dificuldades económicas, o povo revoltar-se contra o seu governo para forçar uma mudança de regime. A acontecer isso, os EUA não só se “livrariam” de uma “dor de cabeça” de quase três décadas, como também aliviaria os receios de segurança do seu aliado Israel.

A última perspectiva, a da comunidade internacional, consiste em analisar o nível de resiliência dos actores relevantes do sistema internacional. Rebuscando o raciocínio avançado na página Olhando Mundo da edição passada do Jornal Domingo, os contornos da tentativa de desmantelamento do acordo nuclear iraniano são mais um teste ao argumento da teoria de estabilidade hegemónica. Os EUA pretendem impor a sua vontade sobre os outros parceiros signatários do acordo. Os outros parceiros procuram alternativas para minimizar o impacto do unilateralismo dos EUA. Portanto, a redefinição da hegemonia corrente ou definição de uma nova vai depender da resiliência de cada uma das partes em impor a sua vontade sobre os outros no sistema internacional.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

EUA de Trump: A Hegemonia em “Queda Livre”


A Teoria de Estabilidade Hegemónica (TEH) defende que a abertura comercial e estabilidade do sistema internacional são dependentes da existência de um Estado hegemónico. O Estado hegemónico promove a estabilidade fomentando o estabelecimento de regimes internacionais que garantam que as expectativas dos diferentes actores do sistema convirjam numa determinada área do sistema internacional. Depois da II Guerra Mundial os EUA desempenharam tal papel ao ter promovido o estabelecimento das Instituições de Bretton Woods. Porém, desde a década de 1970 esta posição de hegemonia tem sido questionada, e a actuação “errática” dos EUA de Donald Trump declarando guerra comercial contra a China e outros Estados coloca o estatuto de potência hegemónica em “queda livre”.

Para ser uma potência hegemónica o Estado deve possuir capacidade e vontade para providenciar liderança no sistema, que se manifesta na promoção de bens públicos internacionais. A estes dois requisitos deve-se acrescer um terceiro, que é o reconhecimento, pelas outras grandes potências do sistema, de que o comportamento e as políticas da hegemonia são benéficos aos seus interesses. Portanto, na ausência de uma potência hegemónica, ou se a hegemonia se encontra em decadência, a TEH prescreve que a abertura comercial e a estabilidade do sistema internacional são mais difíceis de alcançar.

Analisando o caso da ainda considerada potência hegemónica nota-se que, no que diz respeito às capacidades, os EUA continuam a manter, pelo menos em termos absolutos, o estatuto de maior economia mundial. No entanto, a sua posição tem mostrado uma tendência decrescente ao longo do tempo, se comparada com outras potências em ascensão, principalmente a China. Aliás, um dos principais alvos das guerras comerciais é aquele gigante asiático que, por seu turno, ao aumento de tarifas para seus produtos responde também impondo barreiras contra produtos provenientes dos EUA.

As guerras comerciais declaradas pelos EUA têm em vista forçar os outros Estados, a China em particular, a mudar alguns aspectos nas suas políticas comerciais. A expectativa é que a imposição de barreiras estrangule as economias desses países de modo a que façam cedências em função dos interesses norte-americanos. Porém, as dificuldades económicas que se esperam que sejam sentidas nas economias dos atacados podem ser sentidas igualmente nas daqueles que atacam. Aliás, no caso da guerra económica com a China esta tem também imposto medidas retaliatórias proporcionais às dos EUA.

No que diz respeito à vontade, os EUA continuam a mostrar a vontade de providenciar liderança nos grandes assuntos que afectam a estabilidade do sistema internacional. Porém, a demonstração de tal vontade é feita de uma forma “maligna”, no sentido de a hegemonia ser a primeira a violar os acordos por si promovidos e assinados. No âmbito do comércio internacional, por exemplo, os EUA, depois de promoverem a assinatura da Parceria Trans-Pacífica (PTP), Trump recusou-se a ratificar o acordo que previa o livre comércio entre os seus membros. De seguida, os EUA entraram na campanha de guerras comerciais aumentando barreiras comerciais tanto contra adversários como contra inimigos.

Tal como a capacidade, a vontade dos EUA está também a ser questionada e desafiada. No caso da PTP, os outros Estados ao invés de abandonar o acordo decidiram estabelecer um alternativo, mas que contempla a maioria das provisões daquele. Em outros acordos, como o Acordo Nuclear Iraniano, os EUA abandonaram-no e ameaçam qualquer Estado que estabeleça relações comerciais com o Irão. Porém, o “comando de Trump” não foi obedecido nem pelos seus parceiros tradicionais da União Europeia, nem pelos seus adversários do leste europeu ou da Ásia.

Por fim, as guerras comerciais de Trump deitaram para o “caixote de lixo” o nível de reconhecimento que as outras grandes potências do sistema tinham sobre os EUA. De todos os cantos do mundo surgem críticas sobre o cometimento dos EUA aos acordos internacionais. O timoneiro da Casa Branca é visto como sendo tão imprevisível que não se pode confiar para liderar e manter a abertura comercial que é necessária para a estabilidade do sistema internacional. É por essa razão que, por exemplo, os parceiros da UE não só se comprometeram a manter-se no Acordo Nuclear Iraniano, como também estudam formas de proteger as suas empresas das sanções dos EUA. Por outro lado, os adversários chineses não só procuram fortalecer os laços ao nível dos BRICS, como também vão “namorando” os europeus sobre a possibilidade de encontrar novas formas de fazer comércio sem ter de depender dos EUA.


Artigo publicado no Jornal Domingo. Disponivel em http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/internacional/10670-eua-de-trump-a-hegemonia-em-queda-livre

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Lula da Silva para Presidente: Justiça e Vontade Popular Desavindas?


As sondagens em torno das eleições presidenciais de 7 de Outubro próximo indicam que Lula da Silva, antigo presidente do Brasil, vencerá se concorrer. Ele aparece como favorito em todas as sondagens, com um terço das intenções de voto, o que constitui o dobro de qualquer outro candidato. Porém, tudo indica que a Justiça Brasileira não vai autorizar que Lula da Silva seja uma das opções que os eleitores irão encontrar nas urnas no dia da votação.

A contradição aparente resulta do facto de Lula da Silva estar a cumprir uma sentença de doze anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro. O antigo presidente nega todas as acusações, mas a justiça brasileira, embora o caso não tenha chegado ao fim, continua a manter o ex-presidente preso.

Quando foi condenado em Janeiro de 2018, Lula da Silva pediu ao seu partido, o Partido Trabalhista (PT), que indicasse um outro nome para concorrer. Porém, o PT continuou a reiterar que à candidatura de Lula não havia “Plano B”. Sendo coerente aos seus pronunciamentos ao longo dos meses de batalhas legais de Lula, e com manifestações a seu favor à mistura, os líderes do PT dirigiram-se, no passado dia 15 de Agosto, ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e formalizaram o nome de Luís da Silva como candidato nas eleições presidenciais. Na ocasião estiveram presentes mais de dez mil apoiantes do antigo presidente.

Pouco tempo depois da submissão da documentação, a Procuradora-Geral do Brasil intentou uma acção impugnatória contra a candidatura. Na visão da “Justiça Brasileira”, a “Lei da Ficha Limpa” torna inelegível, por oito anos, um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de um órgão colegial, mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos.

O imbróglio criado em torno da elegibilidade de Lula da Silva pode ser lido em três dimensões. Na primeira dimensão, o PT provavelmente acredita genuinamente que Lula poderá ser absolvido e, com isso, concorrer nas eleições. Uma decisão neste sentido quase que garante o regresso dos trabalhistas à presidência do Brasil, pois as intenções de voto estão a favor do ex-presidente. Pode juntar-se a este argumento o facto de, na altura da sua condenação, as autoridades policiais terem tido dificuldades de encaminhar Lula aos calabouços. Isto deveu-se à moldura humana que estava em torno de si e que clamava por “justiça”. Lula teve que entregar-se voluntariamente para ser conduzido à prisão.

A segunda dimensão é que o registo de Lula como candidato pode ser uma jogada estratégica do PT, no sentido de conseguir o sub judice (um conceito jurídico que significa que o processo está ainda em julgamento ou aguarda decisão). Com efeito, a indicação de Lula abre uma batalha judicial que pode levar tempo até a decisão final. O prazo para o TSE decidir sobre quem pode concorrer é o de 17 de Setembro. Caso se decida negativamente, o PT pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Assumindo que este também necessitará de estudar o caso e se posicionar, o PT pode estar com candidatura em sub judice. Isso dá ao partido a possibilidade de indicar um substituto de Lula. Para tal pode recorrer-se a Fernando Haddad, actual presidente do município de São Paulo que consta na candidatura como vice-presidente de Lula. Haddad poderá usar o tempo para “colar” o seu no ao de Lula e, em campanha, se fazer conhecer em todo o país.

A terceira dimensão é aproveitar-se do sub judice para usar a “cartada de vitimização”. Para já, a “questão Lula” já está nos holofotes. O debate poderá ser dominado em torno da justiça ou não no afastamento do ex-presidente na corrida presidencial. O PT pode tentar convencer os brasileiros de que a condenação de Lula tem um cunho político e não judicial. A isto poderá acoplar a forma como a presidente Dilma Roussef, membro do PT, foi removida do poder. O partido tentará passar a imagem de que tudo foi uma trama da “direita” contra a “esquerda” e, assim, tentar amealhar os votos necessários para voltar a governar.


Israel Legaliza a “Discriminação à Moda do Nazismo e do Apartheid”


Num mundo em que se defendem os direitos das minorias, o governo israelita aprovou uma lei que considera que 25% (perto de dois milhões) dos seus cidadãos não são nacionais do Estado de Israel. O país possui pouco menos de 9 milhões de habitantes, 75% dos quais judeus, 21% árabes e 4% de outras pequenas minorias. A controversa lei foi aprovada em Julho pelo Knesset (parlamento israelita), mas alguns partidos da oposição e as diferentes minorias contestam-na, por considerarem que a mesma se equipara às leis de estratificação étnica e racial que caracterizaram a Alemanha do período Nazi e a África do Sul do Apartheid.

A tentativa de ver legitimada a histórica Palestina (parte dela hoje Israel) como terra (ou Estado) do povo judeu já vem desde o período do nacionalismo judaico (sionismo). Já em 1922, pouco depois da incorporação da Declaração Balfour ao mandato britânico sobre a Palestina, o líder Sionista, Chaim Weizman, havia anunciado que pretendia “tornar a Palestina tão Judaica como a Inglaterra é Inglesa”. A resultante escalada de animosidades entre as comunidades árabe e judaica da Palestina levou a Grã-Bretanha a publicar um “Livro Branco” que rejeitava as intenções dos judeus.

Nas duas décadas seguintes a potência mandatária procurou equilíbrio entre as intenções de os judeus possuírem um Estado próprio sem prejudicar os direitos dos árabes e outras etnias da Palestina. A própria resolução 181 das Nações Unidas (1947), que possibilitou o estabelecimento do Estado de Israel, criava salvaguardas para a defesa dos direitos das minorias em cada um dos Estados a serem criados. Aliás, na Declaração da Independência de Israel existe uma cláusula que advoga a “igualdade dos direitos sociais e políticos de todos os habitantes independentemente da sua religião, raça ou sexo”.

A aprovação da lei vai contra normas internacionais de não discriminação e confirma as suspeitas dos críticos de que Israel não está interessado em viver em paz com os palestinianos. Três ilações podem ser retiradas em torno da aprovação da lei. Primeiro, a lei dá argumentos válidos àqueles que acusam os judeus de estar a instaurar um regime com características do nazismo e do apartheid. Ao considerar que Israel é a “nação-Estado do povo judeu”, a lei estipula basicamente que os judeus são “superiores” a qualquer outro grupo étnico e religioso do país. Isto é ainda confirmado com a revogação do estatuto do árabe como língua oficial.

Segundo, a relação entre os judeus e os árabes pode deteriorar-se ainda mais. Por um lado, 21% da população israelita é árabe mas se considera cidadã do Estado. Nessa base, procurou sempre viver em harmonia com os seus concidadãos judeus. A retirada do seu estatuto de cidadãos, ou transformação para cidadãos de segunda categoria, pode levar estes a tomar atitudes de muitos árabes que vivem na Palestina. Ou seja, poderão abraçar o sentimento radical de que Israel é a única raiz da situação caótica que os palestinianos vivem e, com isso, tornarem-se “presas fáceis” aos discursos de islamitas radicais que advogam a necessidade da destruição do Estado de Israel.

Por outro lado, a lei pode ser uma arma poderosa a ser usada pelos palestinianos para, primeiro, ganhar simpatias da comunidade internacional e, segundo, para os grupos radicais intensificarem seus ataques com apoio de eventuais árabes israelitas descontentes. Neste cenário, portanto, Israel arrisca-se a colocar em causa a sua própria segurança.

Uma última análise que se pode fazer é em torno das razões da aprovação da lei pela coligação governamental. Aliás, partidos judeus da oposição parlamentar, como o de Tzipi Livni, mostravam-se favoráveis ao dispositivo, mas insistiam que se devia acrescentar o comprometimento à “igualdade de todos os cidadãos”. Na visão da oposição, se a lei previsse isso, os resultados da votação não seriam tão apertados como foram. Porém, aqui se encontra o cerne da possível razão que levou à intransigência do governo de Netanyahu. Por estar-se a aproximar o período de eleições, ao governo interessava mesmo que a lei fosse aprovada pelos deputados da coligação governamental e rejeitada pela oposição. Desse modo, os partidos governantes ficam, aos olhos dos cidadãos, como aqueles que realmente se preocupam em defender os interesses dos judeus.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Expropriações de Terra na África do Sul: Correcção de uma Injustiça Histórica?


O Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, anunciou no dia 31 de Julho que o Congresso Nacional Africano (ANC) vai avançar com os planos de emendar a constituição para permitir a expropriação da terra sem compensar os proprietários. O plano é visto, pela maioria da população do país, como um avanço para a correcção de injustiças históricas na distribuição de terras, mas tem potencial também de prejudicar a economia sul-africana. Em 2016 já tinha sido aprovada uma lei de expropriação, mas esta previa a compra compulsória de terras para redistribuir. O plano do ANC é explicitar o artigo 25 da constituição que, enquanto alguns sustentam que permite a expropriação sem compensações, outros dizem o contrário.

O problema da terra no país do Rand foi criado pelo regime segregacionista do apartheid. Uma Lei de Terras aprovada em 1913 dividiu o país em áreas para brancos e para negros, tendo criado a realidade de a maior parte da terra, e a mais fértil, estar concentrada na população branca do país, que constitui a minoria. Mais de duas décadas após o fim do apartheid o cenário permanece o mesmo e isso tem sido motivo de contestação política e discursos inflamatórios.

No seu discurso, Ramaphosa referiu que a reforma da terra é de uma “importância crítica” para a economia do país. Porém, o plano traz consigo diferentes interpretações e potenciais implicações adversas. Embora seja evidente que há uma desproporção na distribuição da terra, alguns analistas acreditam que o plano foi desenhado por Ramaphosa com a intenção de granjear simpatias nalgumas facções dentro do ANC que ainda não se curvam a ele.

A população negra do país recebe o anúncio com júbilo, pois vê na reforma a tentativa de “devolução” de um direito inalienável. Aliás, o ANC encontrou um “aliado forte” no parlamento: o Partido dos Lutadores pela Liberdade Económica de Julius Malema, que já havia submetido uma moção, aprovada, no sentido de haver expropriações sem compensação. A expropriação pode ser vista como pertinente e necessária para que sejam corrigidas as injustiças resultantes das várias décadas de vigência do regime do apartheid. Com o plano pode-se fazer uma redistribuição mais equitativa da terra entre os cidadãos sul-africanos.

Aplaudida pela maioria da população sul-africana, a intenção do ANC cria algum medo nos agricultores brancos, nos investidores e na “comunidade internacional”. Os agricultores brancos receiam perder as suas terras, que são a fonte do seu sustento e sem serem compensados. Além disso, há a dúvida em torno das habilidades técnicas dos novos donos de terra para manter ou mesmo elevar os níveis de produção e de produtividade agrícolas.

Os investidores temem que a expropriação seja um prejuízo para economia do país. a este respeito uma das questões que se pode levantar é se, numa sociedade em que a economia continua a ser grandemente dominada pela minoria branca, os novos donos de terra terão o capital necessário para continuar a assegurar a sustentabilidade do sector agrário?

A “comunidade internacional” teme a repetição da crise vivida no vizinho Zimbabwe, quando este país implementou reformas da terra. A este respeito, quando o debate sobre a expropriação sem compensação começou a intensificar-se, houve países ocidentais (como o Canadá e a Austrália) que se prontificaram em receber os agricultores brancos que fossem eventualmente afectados.

Portanto, o sucesso da correcção da injustiça histórica relativa à distribuição da terra está condicionada à tomada de medidas que, por um lado, garantam que haja uma redistribuição da terra pela população negra sem, por outro lado, prejudicar os agricultores brancos, nem retrair o investimento ou ainda alarmar a comunidade internacional.


Artigo publicado no Jornal Domingo. Disponível em http://www.jornaldomingo.co.mz/index.php/internacional/10535-expropriacoes-de-terra-na-africa-do-sul-correccao-de-uma-injustica-historica

Donald Trump “Rasga” o Acordo Nuclear Iraniano: E Mais uma Vez se Prova a Irrelevância dos Regimes Internacionais


Na discussão entre realistas e liberais há uma divergência sobre a relevância dos regimes internacionais (direito internacional) nas relações internacionais. Enquanto os realistas os consideram irrelevantes, pelo menos enquanto não satisfizerem os interesses das grandes potências, os liberais consideram-nos pedras angulares para a melhoria do relacionamento internacional. A recente decisão de Donald Trump, presidente dos EUA, em abandonar o Acordo Nuclear Iraniano confirma, mais uma vez, a tese realista da irrelevância dos acordos internacionais ou mesmo das organizações internacionais.
Oficialmente designado Plano de Acção Conjunto Global, o acordo foi assinado em 2015 entre os cinco membros do Conselho de Segurança mais a Alemanha (P5+1) e o Irão. A assinatura do acordo ocorreu depois de vários anos de discórdia, em que a “comunidade internacional” acusava o Irão de estar a desenvolver programa com o fim de produzir armas nucleares. O Irão, por seu turno, afirmava, de forma reiterada, que o seu programa era pacífico. Devido à tensão criada entre as posições de divergência, a “comunidade internacional” impôs sanções económicas àquele país do Médio Oriente.
A 14 de Julho de 2015 chegou-se a acordo sobre o Plano de Acção, o qual foram estabelecidas medidas para garantir que o Programa Nuclear Iraniano seja pacífico. O acordo possui cinco anexos, cada um dos quais relativo a um conjunto de compromissos de ambas as partes para o alcance do objectivo pretendido. Basicamente, enquanto o Irão se comprometia a cumprir com as exigências da “comunidade internacional” sobre o seu programa, esta também prometia levantar as sanções económicas que afectavam a economia iraniana.
Depois de a Agência Internacional de Energia Atómica ter afirmado que o Irão estava a cumprir com as medidas prescritas no Plano de Acção e do Secretário de Estado dos EUA ter confirmado a verificação da Agência, os EUA e a União Europeia começaram a levantar as sanções ao Irão.
O relaxamento das tensões entre o Irão e os EUA durou, entretanto, enquanto esteve na Casa Branca o presidente Barak Obama. Durante a sua campanha à presidência dos EUA, Donald Trump havia prometido “desmantelar o desastroso acordo com o Irão”. Assim que foi eleito, o presidente “declarou guerra” ao acordo e vários outros acordos internacionais que, na sua visão, são prejudiciais aos interesses dos EUA.
Os EUA “rasgaram” o acordo nuclear ao abandonarem-no. Esta acção unilateral é uma violação do direito internacional, num caso que tinha até merecido resoluções das Nações Unidas. Nem mesmo os apelos dos parceiros tradicionais dos EUA, a União Europeia, foram bastantes para que Trump retrocedesse na sua decisão. Aliás, o presidente dos EUA convidou-os a seguir o seu exemplo e até ameaçou também impor sanções a qualquer empresa estrangeira que continue a fazer negócios com o Irão.
A saída dos EUA do acordo pode ser vista sob duas perspectivas: uma a nível doméstico e outra a nível das relações internacionais. Na primeira perspectiva, Trump mostra uma certa coerência na estratégia que adoptou desde a campanha eleitoral para a presidência. Ele mostrou-se sempre contrário aos “ganhos” do seu antecessor, de tal forma que, quando foi eleito, iniciou uma campanha de desmantelamento do que tinha sido feito pelo presidente Barak Obama. Aliás, o acordo nuclear iraniano tinha sido alcançado sob esforços de Obama.
A segunda perspectiva é mais de relações internacionais, no sentido de que mais uma vez se confirma o pressuposto realista sobre a irrelevância dos regimes e das organizações internacionais. Embora o acordo tenha resultado da concordância de todos os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas + 1 e, por isso, se tenha tornado direito internacional, os EUA não tiveram receio algum em abandoná-lo. E este abandono resulta, para além da defesa dos seus interesses (que estão muito alinhados à pressão do seu aliado natural da região do Médio Oriente, Israel), do seu poder relativo, no sentido de que os outros membros da “comunidade internacional” nada farão contra si para além de discursos condenatórios.