Evolução do Debate Inter-paradigmático


Fontes
·         James E. Dougherty & Robert L. Pfaltzgraff, Jr. (2003). Relações Internacionais: As Teorias em Confronto. Gradiva. Lisboa.
·         Margot Light e A. J. R. Groom. (1985). International Relations. Frances Pinter (Publishers). London.
·         Walter Carlsnaes, Thomas Risse & Beth A. Simmons. (eds). (2002). Handbook of International Relations. SAGE Publications. London.

Uma teoria consiste de análise e da síntese. Analisar é desprender, separar em margens e tomar em partes. Sintetizar é voltar a unir, juntar as partes de tal forma que se componha um todo que faz sentido. Assim, uma teoria geral em relações internacionais consiste em dividir a raça humana em secções, notando as propriedades significantes de cada, examinando os relacionamentos entre elas e descrevendo os padrões formados pelos relacionamentos. Problemas interessantes surgem a cada estágio. Alguns destes são metodológicos. Como deveríamos começar a observar coisas, defini-las, medi-las, compará-las? Outras são teóricas, pois teorias consistem da formação de ideias e conceitos para descrever aspectos do mundo, classificá-los e ter em consideração os vários meios em que eles interagem. Quantas secções da sociedade mundial existem? Como é que elas devem ser subdivididas? Em que propriedade de cada secção estamos interessados? Que relacionamentos interessam e porque razão? Em suma, quais são as unidades de análise mais apropriados, quais as ligações significantes entre elas e quais os níveis reais sobre os quais conduzimos a análise?

Nenhuma destas questões tem respostas acabadas nas relações internacionais – e é assim que deve ser. Se uma disciplina pretende permanecer viva e bem, então a sua teoria geral deve enfrentar constantemente desafios e modificações. Isto porque no conhecimento o progresso consiste em levantar novas questões, com a esperança de ter melhores respostas, e verificando as respostas (novamente uma questão de método) para exactidão, simplicidade, consistência e implicações normativas. O campo não pode oferecer “verdades” inquestionáveis sobre a estrutura e processos da sociedade mundial. Mas ele pode oferecer uma explicação geral racionalmente coerente, embora tentativa, que mostra como é que as áreas específicas de pesquisa (como o controlo do armamento ou desenvolvimento económico) em conjunto se ajustam ao esquema total.

Actualmente, o campo de relações internacionais tem três explicações gerais, designadas paradigmas: realismo, pluralismo e estruturalismo. Embora designadas paradigmas, estas explicações gerais são também designadas de perspectivas, abordagens, visões mundiais, molduras ou teorias gerais. O debate sobre os seus respectivos méritos ocupa um lugar central na disciplina de RI.

Em termos históricos há dois principais grupos de escritas sobre a teoria de relações internacionais: trabalhos publicados antes e depois da primeira guerra mundial. O primeiro grupo forma a herança clássica de RI. Este contém estudos da teoria política, direito, história e diplomacia, produzidos ao longo de vários séculos antes do choque da grande guerra ter criado uma disciplina profissional para o estudo da política mundial.

A segunda categoria histórica é aquela criada pelo ensino e pesquisa quando as RI foram estabelecidas nas universidades a partir de 1918. Ao longo da sua evolução, primeiro no ocidente e mais tarde em todo o mundo, a disciplina académica de RI desenvolveu-se em três estágios, geralmente conhecidos como períodos tradicional, behavioral e pós-behavioral. 

Em cada um destes períodos houve um grande debate sobre a teoria geral, o que significa que existiram três grandes debates. O primeiro foi entre o realismo e o idealismo, que decorreu ao longo do período tradicional, entre 1918 e 1950, e alcançou o pico intelectual com a crítica de E. H. Carr ao idealismo em 1939. Antes de Carr, a visão idealista ou liberal dominava o campo de RI, alimentada pelos horrores da grande guerra. Depois de Carr (e depois do fracasso do apaziguamento em evitar a segunda guerra mundial) a teoria realista não só tomou as rédeas como também produziu uma teoria geral muito penetrante da política mundial. Tem se dito que o realismo venceu o primeiro debate e, como resultado, reorientou o campo numa direcção mais prática e científica. 

A alegada superioridade da visão realista fez com que parecesse desnecessário tomar em consideração a natureza das afirmações daqueles que escreveram antes da segunda guerra mundial ou mesmo as afirmações dos considerados primeiros realistas. Os idealistas dos anos entre as guerras, que são amplamente menosprezados, são tipicamente descritos como um grupo de pacifistas e legalistas utópicos que focalizavam a sua atenção na reforma da política internacional em detrimento de analisar as realidades da política entre os Estados. Enquanto os idealistas visionavam uma paz de longo prazo, a segunda guerra mundial é descrita como uma clara anomalia que representou uma crise severa no paradigma idealista, o que resultou eventualmente na sua substituição pelo paradigma realista, que era superior na sua habilidade de explicar racionalmente a persistente luta pelo poder entre os Estados.

Mais tarde, nos anos 50, o primeiro debate foi posto de lado. Eclodiu o behaviorismo e a sua cruzada pelo empirismo e procedimentos científicos provocou uma confusão com os tradicionalistas, que durou ao longo dos anos 60. O segundo debate teve lugar no contexto da revolução behavioral que já estava a influenciar profundamente as ciências sociais, especialmente a ciência política, e que colocou em lados separados os “tradicionalistas” e os “cientistas”. O debate é simbolizado pelo intercâmbio entre Hedley Bull, que procurava defender o que chamava de “abordagem clássica”, e Morton Kaplan, que foi um dos primeiros a defender o que veio a ser conhecido como “abordagem científica”. Um crescente sentimento entre os estudiosos americanos era de que o campo estava a perder terreno na sua busca da capa da ciência. Embora o realismo, dizia-se, servisse várias funções paradigmáticas, alguns estudiosos exigiam que os seus princípios, como a reivindicação básica de que a luta pelo poder provém de mecanismos biológicos enraizados na natureza humana, bem como a sua metodologia, que conta com fortes exemplos históricos, estavam a evitar que o campo alcançasse o status científico. 

O debate ficou polarizado entre aqueles que acreditavam que os métodos das ciências naturais, ou pelo menos os descritos por filósofos lógico-positivistas da ciência como o modelo hipotético-dedutivo, podiam ser emulados e adoptados no estudo da política internacional, versus os que argumentavam que o estudo do mundo social não era condescendente ao estrito uso de métodos empíricos das ciências naturais. O período em que decorreu o debate entre tradicionalistas e behavioristas é descrito como a “década heróica” e sugere-se que a principal divisão estava “entre os que estavam primariamente interessados nas relações internacionais e os que estavam principalmente comprometidos com a elaboração da ciência social”. O debate sobre os méritos e adequação de uma abordagem positivista não diminuiu, mas existe, entretanto, uma visão comum de que o debate ajudou a promover uma identidade científica do campo através da ampla aceitação e utilização de métodos científicos que ajudaram na tarefa de desenvolver uma teoria cumulativa da política internacional. Mas, tal como o idealismo, o behaviorismo nunca desafiou os fundamentos do paradigma realista; ele focalizava nos métodos de pesquisa, tal como o idealismo focalizava nos valores e prescrições políticas.

Desde cerca de 1970, a fase pós-behavioral desenvolveu-se num debate inter-paradigmático triangular que focalizou na assumpção Estado-cêntrica do mundo. Nos anos 80 o realismo foi colocado de fronte contra o pluralismo e estruturalismo. Os indícios de quão profundas eram as novas divisões começaram por aparecer de forma hesitante, começando pela discussão da importância da filosofia do “paradigma” de Kuhn para o campo, e depois acelerou-se. A explicação típica da origem do terceiro debate advoga que durante os anos 70 o realismo entrou em tempos difíceis quando os eventos da realidade da política internacional, particularmente na esfera económica mas também em relação a questões de paz e segurança, pareciam contradizer algumas das assumpções realistas básicas sobre a natureza da política internacional. Em resultado desta aparente incongruência é geralmente acreditado que “abordagens alternativas” como teoria da “interdependência complexa” de Joseph Nye e Robert Keohane, a teoria do sistema mundial de Immanuel Wallerstein, a teoria da teia da arranha de John Burton e a teoria da dependência foram desenvolvidas e desafiaram directamente os princípios básicos do realismo. Fundamentalmente, os críticos do realismo desafiavam a reivindicação central do estadocentrismo, a noção de que a independência de preferência a interdependência caracterizava a condição da política mundial e que se pode fazer uma distinção clara entre high politics (assuntos militares e de segurança) e low politics (assuntos económicos, ambientais e direitos humanos). Tem sido sugerido que foi no contexto do crescente enfoque na interdependência que emergiu um sub-campo da Economia Política Internacional.

Embora se tenha defendido que o surgimento do neo-realismo deu uma lufada de ar fresco ao realismo, muitos consideram que o terceiro debate não termina com a vitória do realismo. Diferentemente dos anteriores dois grandes debates, o terceiro debate é visto como um debate não para ser ganho, mas sim um pluralismo com que viver. Por outras palavras, as reivindicações sobre a ascensão do neo-realismo não significaram que os aderentes das abordagens liberal (pluralista) e marxista (globalista) pararam de contribuir no discurso de RI, e alguns até questionam se os três paradigmas estiveram alguma vez em competição entre si. Adicionando-se à confusão de compreender este período de história disciplinar em termos de um terceiro grande debate foi a emergência, durante os anos 80, de várias abordagens pós-positivistas que eram profundamente críticas de todas as principais abordagens do campo. De acordo com Yosef Lapid, o ataque dos feministas, teoria crítica da Escola de Frankfurt e dos pós-estruturalistas, sobre o que percebiam ser as bases epistemológicas do campo, assinalou o surgimento de um terceiro debate, que consistia de um esforço disciplinar para reavaliar opções teóricas numa era pós-positivista. De que a literatura pode simultaneamente fazer referência a duas controvérsias fundamentais sobre o mesmo nome de “terceiro debate” deve ser suficiente indicação de que existe seriamente contradição com esta compreensão da história do campo de RI.

Cada um dos paradigmas parte de uma imagem do mundo diferente do outro. Para os realistas a sociedade mundial é um sistema de Estados organizados como as “bolas de bilhar” em colisão intermitente. Para os pluralistas, é uma “teia de arranha”, uma rede de numerosos relacionamentos que se cruzam entre si. Para os estruturalistas, é um “polvo multi-encabeçado”, com os poderosos tentáculos a sugarem constantemente as fracas periferias em favor dos poderosos centros.

Sob estes fundamentos contrastantes, os proponentes de cada paradigma edificaram uma estrutura e teoria. Cada um dos três é coerente nos seus próprios termos, mas também cada um contradiz os outros. As contradições são mais distintivas em relação às maiores categorias teóricas de actores, dinâmicas e variáveis dependentes. Sobre os actores, os realistas vêem apenas os Estados; os pluralistas vêm os Estados em combinação com uma grande variedade de outros actores; e os estruturalistas vêem as classes. Sobre a dinâmica, os realistas vêem a força como primordial; os pluralistas vêem o complexo de movimentos sociais; os estruturalistas vêem a economia. Sobre as variáveis dependentes, os realistas vêem a tarefa de Relações Internacionais como sendo simplesmente de explicar os Estados fazem; os pluralistas vêem-na mais largamente como um esforço para explicar todos os grandes eventos mundiais; e os estruturalistas vêem as suas funções como demonstrando porque é que o mundo contém contrastes aterradores entre os ricos e os pobres.

A partir destas diferenças fundamentais, muitas outras fluem. Os três paradigmas têm forças e fraquezas. Eles também levam a juízos contrastantes de quão vasto âmbito de estudo as RI devem ter. Os realistas definem as fronteiras do seu sujeito de forma estrita, estado-cêntrica, muitas vezes preferindo o termo política internacional para o descrever. Os pluralistas alargam as fronteiras incluindo corporações multinacionais, mercados, grupos étnicos e nacionalismo bem como o comportamento dos Estados, e chamam o seu sujeito de RI ou sociedade mundial. Os estruturalistas têm as fronteiras mais amplas de todos, enfatizando a unidade de todo o sistema mundial a todos os níveis, focalizando nos modos de produção e tratando as políticas interestatais como simplesmente um fenómeno superficial.

A utilização mais confusa ocorre ao nível de conceitos específicos – os fundamentos de qualquer teoria. Alguns conceitos encontram-se apenas numa teoria, por serem de importância crucial para elas: dissuasão e alianças no realismo, etnicidade e interdependência no pluralismo, exploração e dependência no estruturalismo. Outros, no entanto, são usados com significados geralmente similares nos três: poder, soberania e lei, por exemplo. Outros ainda, como o imperialismo, o Estado e hegemonia, são usados nos três mas com diferentes interpretações. Como consequência, a tarefa de ler a literatura de RI é, em parte, desembaraçar as várias utilizações. Muitos escritores buscam conceitos noutros paradigmas, o que ajuda a expicar a naureza confusa de muitos escritos nas RI. Os pluralistas são os piores ofensores a este respeito, muitas vezes seguindo caminhos como a lógica de formação de regimes, o papel da má percdepção na política externa ou as fontes domésticas do conflito interno – e depois retratando a uma respeitável conclusão ‘realista’ que não consegue seguir a partir do argumento.